Pouco mais da metade do Teatro João Caetano estava ocupado – e isto porque era o último dia de um espetáculo que ficou quatro meses em cartaz. Nos outros dias da temporada, na Praça Tiradentes, a lotação variava entre 90 e 100 pessoas por noite. A temporada de estréia, no Teatro Vanucci, não foi muito diferente. Também, pudera... Se o espetáculo era sobre a Rainha da Praça Tiradentes, por que estreá-lo em um teatro da Zona Sul do Rio de Janeiro?
É revoltante a falta de divulgação e, principalmente, o descaso com que foi tratado um espetáculo deste nível. “Aracy Cortes – A Rainha da Praça Tiradentes” não é só um mero musical que relembra músicas e figurinos dos anos 20, 30 e 40. Mas é uma peça que transporta o espectador à épocas passadas - ou até desconhecidas, no caso dos mais jovens. Faz com que o público se sinta parte do passado e dá aquela sensação de saudade de um tempo que não volta mais.
O espetáculo é dinâmico e não deixa o tédio aparecer nem por um segundo. O elenco, formado pela banda Velha Galeria e os atores Carlos Leça, Beth Lamas e Marília Barbosa, parece ter uma interação perfeita e, ainda que sejam poucos atores em cena, não deixam o ritmo desacelerar, conquistando toda a atenção da platéia durante os 90 minutos de show.
O repertório musical – muito bem escolhido, por sinal - arranca aplausos inesperados da platéia e faz com que sintamos vontade de levantar, cantar junto e sair dançando. É uma peça realmente emocionante, do início ao fim. No entanto, dois momentos merecem destaque especial: a hora em que Aracy, na pele de Marília, canta “Aquarela do Brasil” – demonstrando seu amor pela nossa cultura e a sua perseverança em lutar contra um teatro baseado nos moldes europeus.
Diante de bailarinas com plumas e paetês - ao legítimo estilo francês de se fazer teatro - Aracy fazia questão de entrar em cena com sua saia de chita e flor no cabelo, como uma boa baiana. O máximo que fazia para agradar os produtores e diretores, era colocar alguma lantejoula em sua roupa. Desta maneira, representando os brasileiros como eles realmente eram, Aracy conquistou os palcos da Praça Tiradentes por anos e foi a primeira estrela de revista a cantar no exterior, em 1933. Como é dito durante a peça: “Pela primeira vez, o brasileiro se viu na voz, no corpo e na dança de Aracy Cortes”.
O outro momento que merece destaque é a cena dos últimos meses de vida da artista. Com uma conotação que se encaixaria perfeitamente aos dias atuais, a peça denuncia o descaso do governo em relação aos nossos artistas de valor; aos atores e músicos que fizeram história e que lutaram para que a nossa cultura e nosso samba fossem valorizados perante um mundo onde somente quem cantava com sotaque francês ou americano tinha lugar reservado na memória cultural. Se não fossem alguns artistas vivos até hoje, ou pessoas de convívio de Aracy, certamente teríamos perdido um grande capítulo da história do teatro brasileiro.
Toda a peça é narrada pelo personagem J.Maia, na pele de Carlos Leça. Maia é a memória viva de mais de 50 anos do teatro brasileiro. Começou a trabalhar como contra-regra aos 14 anos na Praça Tiradentes e, por conta do amor que tinha pelo teatro e pelos artistas, ganhou uma placa em sua homenagem no Teatro João Caetano. Maia sabe detalhes da vida de Aracy e os conta com muita emoção – emoção esta, muito bem transmitida por Carlos Leça, que conseguiu incorporar, inclusive, os trejeitos de Maia. Neste ponto, a peça pecou em não descrever quem era o contra-regra, de onde ele surgiu e como nasceu sua relação com Aracy.
Leça, além de interpretar Maia, também empresta sua pele à Oscarito, Renato Maia Lira (chefe de gabinete do presidente Washington Luis, com quem Aracy viveu por 12 anos), China e a outras figuras importantes da época. Beth Lamas, por sua vez, começa como a funcionária pública, um tanto quanto fofoqueira, que ajuda Maia nos trâmites para liberar a pensão de Aracy – que, depois de dois anos de burocracia, sai, ironicamente, no dia de sua morte. Mais uma crítica presente nas entrelinhas do roteiro.
Além da funcionária, Beth ainda vive, entre outros, a irmã de Aracy - a também atriz e cantora Dalva Espíndola - e o crítico teatral do jornal “A Noite” Mário Magalhães – que criou o nome com que foi conhecida (o nome verdadeiro de Aracy era Zilda de Oliveira Espíndola). A transição entre um personagem e outro era feita ali mesmo no palco, diante do público; mas as caracterizações de Leça e Beth eram tão perfeitas, que poderíamos confundi-los perfeitamente com outros atores.
A aula de história em forma de teatro é enfeitada por coreografias dinâmicas, engraçadas e sincronizadas e por músicas no estilo “Jura”, “Ai Ioiô”, “Carinhoso”, “Ave Maria”, “Tem francesa no samba” e “Aquarela do Brasil” – belissimamente cantadas nas vozes contrastantes de Marília e de Leça. As músicas se encaixavam perfeitamente no enredo da história, como se fizessem parte das falas dos personagens. Outro recurso muito bem utilizado na peça, e que nos dava uma sensação maior ainda de veracidade, era a inserção de comentários de artistas da época, como Dercy Gonçalves e Carvalhinho.
Aracy Cortes cresceu em Catumbi e se apresentou com os Oito Batutas, grupo de seu vizinho, Pixinguinha. Lançou Paulinho da Viola e foi a primeira a cantar o samba “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso, em 1939. Foi uma mulher muito rica por tudo o que conquistou ao longo de sua carreira, mas perdeu tudo o que tinha quando se enviuvou de Renato Meira Lima porque todos os seus pertences estavam em nome dele. Teve uma velhice miserável e não encontrou apoio do governo da época. J.Maia, o ex-contra-regra, a acolheu em sua casa por 25 anos, até o dia de sua morte em 1985. Seu corpo foi velado no Teatro João Caetano, na mesma praça onde ela viu sua carreira decolar.
A peça, escrita por Alexandre Guimarães e dirigida por Rogério Fabiano e Cláudio Lins, que acabou no último domingo, retrata perfeitamente a vida desta artista que a geração atual pouco conhece. Talvez, o espetáculo não seja mais encenado daqui para frente. A falta de divulgação e de interesse por parte do público não garantiu o êxito que deveria ter. É uma pena que uma jóia tão rara da nossa cultura seja lembrada e admirada por poucos. Pior ainda, é saber que dentro de alguns anos – não muitos – essa e outras memórias ficarão perdidas.
É triste ver o descaso das autoridades com o teatro brasileiro. É triste ver o tipo de teatro que ganha força nos dias de hoje. Os anúncios discrepantes em jornais: o besteirol ganha anúncios enormes e coloridíssimos, ofuscando as pequenas publicidades de grandes e verdadeiros espetáculos. O besteirol lota por meses os teatros da cidade e ocupa espaços anteriormente dedicados a verdadeiras obras de arte, tanto da nossa música, quanto da nossa dança.
3 comentários:
QUE LIÇÃO !!! Desculpme a ignorância, mas eu nunca nem havia ouvido faalr na Aracy e uma coisa é certa o Brasil só valoriza o que não presta. Sem preconceito contra os pagodes "ela me traiu, ela me deixou", que estão na boca do povo ou então os funks que quanto mais obscenos mais vendem. É com isso que vamos escrever nossa história? Isso e muito preocupante. Até que ponto um país sem cultura pode chegar, acho que já estamos pagando pra ver. Infelizmente
Lo, parabéns pelo artigo e obrigada por compartilhar nem que seja um pouco de, acho que já podemos chamar assim, rara cultura
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